terça-feira, 9 de outubro de 2012

Outro pedaço de história


Havia há muito uma fotografia a preto e branco que preenchia o pequeno espaço da comoda. Era uma fotografia antiga, envelhecida com o passar dos anos, mas só na sua camada exterior, onde uma linda moldura de prata trabalhada, embelezava e enquadrava as belas fisionomias congeladas, na mesma figura do rosto que há anos perdurava no mesmo espaço, na mesma moldura, com a mesma angelical expressão.
Uma senhora, no tardar dos seus velhos anos, sentava-se no sofá de tecido verde-escuro à meio da sala, o tecido era gasto, não tanto pelo passar do tempo, mas mais pelo desgaste do uso, junto a si uma velha mesa de carvalho maciço, envernizado, de aspecto rústica, onde a pequena chávena de chá de camomila frio pousava toscamente. Um guardanapo de pano branco perola, imaculadamente limpo pousava sobre o seu colo, tinha um bordado limpo, perfeito, duas letras desenhadas a ponto cruz num tom marfim.
Em seu redor poucas fotografias cobriam o desfolhado espaço, um cão perdigueiro farejando a procura de caça no meio de uma vegetação verde e densa, de nariz húmido, retratado por uma pincelada mais branca e desengonça, uma criança que brinca numa poça de lama que se adensava com a água que escorre do chafariz partido a seu lado, numa expressão de pura felicidade ao ver os salpicos castanhos no seu delicado vestido rosa. Um móvel grande no mesmo tom de carvalho da mesa cobria quase a extensão da parede branca, parecia desproporcional na sua largura e comprimento comparado com o tamanho mínimo da estreita sala. Algumas peças em loiça já cobertas de pó repousavam sobre ele, desconexas entre si e espalhadas sem cuidado sobre o móvel.
O seu rosto talhado pelo passar pouco generosos dos anos, contava uma estória indissociável da sua, as manchas negras do queimar do sol na suas bochechas redondas e esbranquiçadas, de pele flácida enrugada, as curvas descendentes dos seus olhos num evocar de tristeza e calma, como se o passar dos anos, em algo trouxesse momentos de pura serenidade, mesmo quando a emoção não tende a controlar. A brancura dos seus olhos, de um azul água, tão límpido como o clarear do dia, enchia da história e vida, a luz que por eles irradiava era verdadeira e sentida.
Ao lado da chávena trabalhada, uma carta de papel antigo, numa caligrafia pensada, de letra bem desenhada, numa escrita que já não se escreve assim. Num papel de tom pérola que a  tinta preta quase trespassava de lado a lado, uma só folha apenas estava escrita, não mais que sete linhas ocupavam o primeiro espaço do papel. O envelope do mesmo tom, apenas uma pequena linha tinha escrita “Para ti: O meu eterno e terreno amor”, era tudo aquilo que constava nele. A carta estava passada, não amarrotada, mas como se alguém, a vezes e vezes a levasse ao peito apertando-a, e no fim a voltasse a dobrar, exercendo pressão sobre ela com as duas mãos, esticando-a, para ficar o mais lisa como quando a viu pela primeira vez.
Na carta poderia ler-se “Meu amor. Há muito passou desde que a guerra me arrastou para longe do teu colo, tão cedo, tão prematuramente que me arranca lágrimas em sangue do meu peito. Em ti adormeço os meus sonhos mais calmos, mais puros, a minha fantasia em ti desempenha toda a sua força, em ti, mas só em ti meu amor, os meus braços aperta forte todas as noites para que durmas protegida contra o meu peito. A guerra me chama de novo, mas te escrevo em breve, e se não meu amor, fica com esta carta e com a certeza que sempre pertenci a ti”.
Aos rostos da velha fotografia a preto e branco pertenciam agora os seus nomes, a sua vida que, pouco tempo teve para ser vivida, mas que ficou preenchida para sempre no grande amor que a preencheu. Aquele amor que ultrapassou a dor, a separação, a guerra, a morte. Um amor que a preenchia para lá dos anos, para lá da separação, que encolhia a solidão do espaço e do tempo. Havia, em tempos, um amor assim. Havia.

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