Havia há muito uma fotografia a
preto e branco que preenchia o pequeno espaço da comoda. Era uma fotografia
antiga, envelhecida com o passar dos anos, mas só na sua camada exterior, onde
uma linda moldura de prata trabalhada, embelezava e enquadrava as belas fisionomias
congeladas, na mesma figura do rosto que há anos perdurava no mesmo espaço, na
mesma moldura, com a mesma angelical expressão.
Uma senhora, no tardar dos seus velhos anos, sentava-se no
sofá de tecido verde-escuro à meio da sala, o tecido era gasto, não tanto pelo
passar do tempo, mas mais pelo desgaste do uso, junto a si uma velha mesa de
carvalho maciço, envernizado, de aspecto rústica, onde a pequena chávena de chá
de camomila frio pousava toscamente. Um guardanapo de pano branco perola,
imaculadamente limpo pousava sobre o seu colo, tinha um bordado limpo,
perfeito, duas letras desenhadas a ponto cruz num tom marfim.
Em seu redor poucas fotografias cobriam o desfolhado espaço,
um cão perdigueiro farejando a procura de caça no meio de uma vegetação verde e
densa, de nariz húmido, retratado por uma pincelada mais branca e desengonça,
uma criança que brinca numa poça de lama que se adensava com a água que escorre
do chafariz partido a seu lado, numa expressão de pura felicidade ao ver os
salpicos castanhos no seu delicado vestido rosa. Um móvel grande no mesmo tom
de carvalho da mesa cobria quase a extensão da parede branca, parecia
desproporcional na sua largura e comprimento comparado com o tamanho mínimo da
estreita sala. Algumas peças em loiça já cobertas de pó repousavam sobre ele,
desconexas entre si e espalhadas sem cuidado sobre o móvel.
O seu rosto talhado pelo passar pouco generosos dos anos,
contava uma estória indissociável da sua, as manchas negras do queimar do sol
na suas bochechas redondas e esbranquiçadas, de pele flácida enrugada, as
curvas descendentes dos seus olhos num evocar de tristeza e calma, como se o
passar dos anos, em algo trouxesse momentos de pura serenidade, mesmo quando a
emoção não tende a controlar. A brancura dos seus olhos, de um azul água, tão
límpido como o clarear do dia, enchia da história e vida, a luz que por eles
irradiava era verdadeira e sentida.
Ao lado da chávena trabalhada, uma carta de papel antigo,
numa caligrafia pensada, de letra bem desenhada, numa escrita que já não se
escreve assim. Num papel de tom pérola que a
tinta preta quase trespassava de lado a lado, uma só folha apenas estava
escrita, não mais que sete linhas ocupavam o primeiro espaço do papel. O
envelope do mesmo tom, apenas uma pequena linha tinha escrita “Para ti: O meu eterno e terreno amor”,
era tudo aquilo que constava nele. A carta estava passada, não amarrotada, mas
como se alguém, a vezes e vezes a levasse ao peito apertando-a, e no fim a
voltasse a dobrar, exercendo pressão sobre ela com as duas mãos, esticando-a,
para ficar o mais lisa como quando a viu pela primeira vez.
Na carta poderia ler-se “Meu
amor. Há muito passou desde que a guerra me arrastou para longe do teu colo,
tão cedo, tão prematuramente que me arranca lágrimas em sangue do meu peito. Em
ti adormeço os meus sonhos mais calmos, mais puros, a minha fantasia em ti
desempenha toda a sua força, em ti, mas só em ti meu amor, os meus braços
aperta forte todas as noites para que durmas protegida contra o meu peito. A
guerra me chama de novo, mas te escrevo em breve, e se não meu amor, fica com
esta carta e com a certeza que sempre pertenci a ti”.
Aos rostos da velha fotografia a preto e branco pertenciam
agora os seus nomes, a sua vida que, pouco tempo teve para ser vivida, mas que
ficou preenchida para sempre no grande amor que a preencheu. Aquele amor que
ultrapassou a dor, a separação, a guerra, a morte. Um amor que a preenchia para
lá dos anos, para lá da separação, que encolhia a solidão do espaço e do tempo.
Havia, em tempos, um amor assim. Havia.
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